O Brasil atravessa um paradoxo na área médica: enquanto o número total de profissionais de saúde cresce de forma consistente, a distribuição desigual de médicos no Brasil compromete a qualidade e a equidade no acesso aos serviços de saúde. Essa discrepância entre quantidade e localização revela um dos desafios históricos mais persistentes da gestão pública brasileira.
Nas décadas de 1960 e 1970, a recomendação internacional era simples: um médico para cada 1.000 habitantes seria suficiente para cobrir as demandas da população. Esse parâmetro, no entanto, tornou-se obsoleto. Com os avanços na medicina, na epidemiologia e no aumento da expectativa de vida, essa proporção não atende mais às necessidades de saúde de uma população mais idosa e com maior carga de doenças crônicas. Apesar disso, o Brasil conseguiu atingir e ultrapassar essa marca.
Atualmente, são aproximadamente 540 mil médicos em atividade no país, número que deve dobrar nos próximos anos em razão da abertura acelerada e pouco criteriosa de faculdades de Medicina.
Em termos absolutos, isso colocaria o país próximo de países desenvolvidos no quesito quantidade de médicos por habitante. O verdadeiro desafio, porém, está em como esses profissionais se distribuem.
Números que escancaram a desigualdade
A diferença regional é alarmante. Capitais e grandes centros urbanos, como São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Vitória, concentram grande parte dos médicos. Vitória, por exemplo, possui cerca de 18 médicos para cada 1.000 habitantes, enquanto Boa Vista, em Roraima, mal chega a 1,8. Essa diferença de dez vezes mostra como o acesso à assistência médica básica e especializada é determinado mais pelo CEP do que pela necessidade de saúde da população.
Grandes cidades oferecem melhores hospitais, salários mais competitivos, infraestrutura de qualidade, boas escolas para os filhos e oportunidades culturais e de lazer. Diante desse cenário, é compreensível que profissionais recém-formados, muitos oriundos de famílias de classe média alta e formados em faculdades particulares com mensalidades elevadas, optem por permanecer nesses centros.
O impacto sobre o SUS e a população vulnerável
Essa concentração de médicos em áreas privilegiadas produz um efeito perverso sobre a saúde pública. Regiões mais pobres, muitas delas no interior do Norte e do Nordeste, ficam desassistidas. Isso agrava problemas já existentes, como altas taxas de mortalidade infantil, maior incidência de doenças infecciosas e pior controle de condições crônicas, como hipertensão e diabetes.
Sem profissionais suficientes, cidades pequenas não conseguem garantir atendimento médico regular à população. As unidades de saúde permanecem vazias ou atendidas por equipes incompletas. Com isso, aumentam os casos que poderiam ser resolvidos na Atenção Básica e acabam sobrecarregando os hospitais das capitais com situações graves que poderiam ser evitadas.
Tentativas de solução e suas limitações
Nos últimos anos, o Programa Mais Médicos foi uma das tentativas mais concretas de amenizar esse desequilíbrio. Ao importar médicos cubanos e direcioná-los para regiões sem cobertura, o programa conseguiu levar assistência médica a áreas onde a população jamais havia contado com atendimento regular. Os relatos das comunidades atendidas foram, em sua maioria, positivos. Mesmo com limitações estruturais, as equipes conseguiram reduzir a fila de espera por consultas e humanizar o atendimento.
No entanto, o programa foi descontinuado por razões políticas, e os profissionais estrangeiros foram dispensados. Sem um plano consistente de reposição, muitas cidades voltaram à condição de vazio assistencial. Isso expôs, mais uma vez, a fragilidade de políticas de saúde públicas que dependem de soluções emergenciais e não de reformas estruturais.
Caminhos possíveis para o futuro
Para resolver o problema da distribuição desigual de médicos no Brasil, a solução não pode se restringir a formar mais profissionais. É preciso atuar sobre as causas que mantêm essa concentração. Investir em infraestrutura hospitalar e em equipamentos adequados nas cidades menores é um dos primeiros passos. Sem condições mínimas de trabalho, dificilmente profissionais aceitarão se fixar nessas localidades.
Outro ponto crucial é a valorização das equipes multiprofissionais. Treinar e capacitar enfermeiros, técnicos de enfermagem, agentes comunitários e profissionais da Estratégia Saúde da Família permite garantir assistência contínua mesmo onde não há médicos disponíveis. Além disso, ampliar e fortalecer a rede de Unidades Básicas de Saúde, atualmente com cerca de 5.000 espalhadas pelo país, é indispensável para garantir cobertura territorial adequada.
Políticas de incentivo também precisam ser revistas. Criar planos de carreira médicas específicas para o SUS, com gratificações por atuação em áreas remotas, auxílio-moradia e progressão profissional, ajudaria a atrair profissionais para essas regiões. Da mesma forma, incluir estágios e residências obrigatórias em cidades de pequeno porte durante a formação médica poderia reduzir a resistência ao trabalho no interior e criar vínculos com as comunidades locais.
Uma escolha social e ética
A distribuição desigual de médicos no Brasil não é apenas um problema administrativo ou estatístico. É uma questão de compromisso social e ética médica. Formar-se médico significa, em última instância, colocar-se a serviço da sociedade. Ignorar as regiões mais vulneráveis é perpetuar as desigualdades históricas que ainda assolam o país.
Para estudantes de Medicina, esse cenário impõe um desafio adicional. Além de dominar o conteúdo técnico, será necessário refletir sobre a responsabilidade social da profissão e buscar formas de contribuir para a redução dessas disparidades. Afinal, o papel da Medicina vai além dos grandes hospitais universitários: ele se concretiza nas pequenas UBS, nos postos de saúde de vilarejos e nas casas visitadas por agentes comunitários.
A meta não deve ser apenas alcançar números altos de médicos por mil habitantes, mas garantir que cada brasileiro, independentemente de onde viva, tenha acesso a atendimento médico digno e humanizado. Isso é o que de fato diferencia um sistema de saúde universal de um sistema excludente.
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