“Tic-tac, tic-tac” é uma figura de linguagem que ganhou destaque durante as recentes disputas eleitorais. Infelizmente, ela também pode simbolizar os atrasos e o descumprimento de ordens judiciais nos processos de autorização de cursos de Medicina. Atualmente, há muitos processos aguardando decisão do MEC. Segundo o painel “Processos SERES – Medicina”, da AMIES, mais de 60 procedimentos permanecem pendentes e, em mais de 50% dos casos analisados, o resultado foi o indeferimento, o que tem gerado diversos questionamentos.
Esse cenário contrasta com o pedido da AGU ao STF, feito em maio de 2024, que solicitava a suspensão dos processos judiciais, sob o argumento de que a análise administrativa seria concluída em até 120 dias. O pedido foi apresentado após sucessivas decisões de 1ª e 2ª instâncias, que, diante do reiterado descumprimento de ordens para a conclusão de processos que tramitavam há anos – alguns já sujeitos a multa diária – não surtiram efeito. Mesmo com os altos valores impostos ao Erário, as determinações judiciais continuavam a ser descumpridas, o que levou o Poder Judiciário a adotar medidas sub-rogatórias que substituem parcialmente o cumprimento de uma obrigação, nos termos do Código de Processo Civil. Por se tratar de cursos com autorização de funcionamento pendente, a medida aplicada consistiu na permissão para a realização de vestibulares até que o MEC analisasse, definitivamente, os processos regulatórios.
A petição da AGU evidenciou o posicionamento da União quanto ao papel do Poder Judiciário na autorização de novos cursos de Medicina, afirmando que o STF seria o “juiz natural da questão” e que “é fundamental que a jurisdição constitucional objetiva seja empregada”. Segundo o órgão, essa postura evitaria instabilidades na política pública decorrentes de autorizações de vestibulares para cursos sem portaria e reduziria os riscos aos alunos. Contudo, é importante ressaltar que o conceito de “juiz natural”, que designa o magistrado competente para julgar uma causa, não justifica a concentração de todos os processos no STF; ao contrário, tal concentração contrariaria justamente esse princípio.
No mesmo sentido, a discussão sobre atrasos em processos administrativos ou falhas na sua condução deve ser apreciada pelas instâncias de base da Justiça Federal, que possibilitam uma ampla análise de provas e o contraditório entre as partes. Por esse motivo, também não é cabível a aplicação indiscriminada da “jurisdição constitucional objetiva”, já que ela é abstrata, visa preservar a ordem constitucional e não pode ser aplicada indiscriminadamente em demandas que envolvem direitos subjetivos de estudantes e instituições de ensino.
Em síntese, a União sustentou que o STF deveria barrar todas as ações nas instâncias ordinárias para que pudesse concluir os processos de autorização em quatro meses e, como se vê agora, cometeu dois erros: tratou seus atrasos e falhas como questão constitucional e, o que é pior, errou bastante na previsão do prazo.
Quatro meses para concluir os processos?
A União alegou que as decisões judiciais eram “interferências adversas” que atrasavam a atuação da área técnica. A alegação demonstra um certo despeito em face das decisões judiciais e, talvez, uma confiança excessiva no cumprimento de uma tarefa da qual o MEC ainda não se desincumbiu.
Independentemente de a proposta de suspensão ter sido aceita ou não, permanece em aberto uma questão: o MEC fez uma previsão equivocada, se atrasou ou está deliberadamente atrasando a conclusão dos processos de medicina? Talvez a resposta seja que o órgão sabia que não conseguiria nem desejava concluir os processos no prazo estipulado e, por isso, não se empenhou em cumpri-lo.
Não se pode afirmar que o MEC foi compelido a dedicar tempo excessivo aos processos judiciais, pois a AGU lhe garante orientação técnica e apoio no contencioso. Além disso, sempre houve em suas competentes Secretarias, servidores que, diariamente, lidam com essas demandas. Por outro lado, boa parte do debate judicial remonta a períodos anteriores ao pedido de prazo no STF – questões que já deveriam ter sido superadas se o MEC tivesse analisado os pedidos de autorização sem incorrer em novas ilegalidades. Assim, é claro que o atraso ou a contenção administrativa não decorre das demandas judiciais.
Certo é que, quase um ano depois daquele pedido, boa parte dos processos administrativos seguem – inexplicavelmente, vale dizer – atrasados ou represados.
Pedido absurdo e visão incongruente
O pedido final da petição da União foi: “a suspensão dos processos judiciais pelo prazo de 120 dias, assim como a suspensão das decisões judiciais que tenham por objeto os processos administrativos pendentes que estejam sendo apreciados à luz da Portaria SERES/MEC n. 531/2023”. A abrangência desse requerimento chama a atenção, pois, na prática, propõe a criação de um período de exceção ou a instituição de um foro privilegiado para os processos administrativos de medicina.
Se o pedido fosse aceito, ocorreria a seguinte situação:
- Os atrasos imotivados do MEC não poderiam ser objeto de ação judicial;
- A legalidade das regras previstas na Portaria 531/2023 também ficaria fora de debate;
- E, se um servidor descumprir a lei ou uma ordem judicial, tampouco haveria espaço para discussão judicial durante os 120 dias.
Nesse período, o MEC poderia agir livremente, sem a interferência judicial, uma atitude que remete a uma postura autoritária. A União poderia até alegar que eventuais insatisfações seriam encaminhadas ao STF; entretanto, o tribunal, por regra, não aceita questões originárias sobre direitos subjetivos. Assim, na prática, haveria um período de exceção ou um foro privilegiado atípico, no qual as partes afetadas não teriam como agir diretamente.
Analisado com calma, o pedido revela-se aviltante.
Ecos da incongruência
A questão do período de exceção já deveria ter sido superada, já que o STF nem analisou o requerimento. Contudo, a ideia de que o Supremo seria um foro especial para a matéria de medicina continua causando estragos.
A Secretaria de Regulação do MEC (SERES), mesmo contando com uma equipe altamente competente, ainda descumpre ordens judiciais de instâncias ordinárias e, pelo tom das petições juntadas em sua defesa, parece estar aguardando uma decisão do STF. Imaginemos, nesse contexto, que o STF suspendesse todos os processos em primeira instância, mas, posteriormente, confirmasse que a União, por meio de alguns servidores, provocou “interferências adversas” e retardou indevidamente os processos, ocasionando vultosos prejuízos e multas. Como os envolvidos se defenderiam após tal decisão? Eles só teriam direito ao contraditório depois da decisão do STF? Eles prefeririam se defender em primeira instância ou se submeter a uma jurisdição objetiva e abstrata? A União provavelmente nem sequer refletiu sobre essa possibilidade.
Ainda nesta esfera de poder, na Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação (CES/CNE), outro órgão muito qualificado, é comum ouvir que “em breve o STF decidirá sobre o tema”, como argumento para não considerar decisões judiciais que suspenderam total ou parcialmente as regras da Portaria 531/2023. Pior ainda, negando a função recursal do Órgão, foi dito em reunião aberta que discussões jurídicas desviam a atenção das políticas públicas. Mas, lembremos: o CNE não só orienta ou implementa políticas do MEC, mas também julga a legalidade dos atos oriundos da SERES, tarefa que impõe a análise isenta da legalidade do ato recorrido. Nesse contexto, apesar da defesa da ordem jurídica, reiteradamente feita pelo Presidente da CES e parte dos Conselheiros, há uma minoria que pensa e reverbera a visão incongruente de que a discussão sobre direitos subjetivos na Justiça Federal não é adequada para a Administração Pública.
É imprescindível reconhecer que os fundamentos do direito da educação superior são defendidos com seriedade por instituições como a SERES e o CNE. No entanto, a estratégia de desqualificar decisões judiciais e aguardar uma decisão do STF revela-se equivocada e tem repercussões negativas não só para o setor da educação médica.
A situação remete a episódios recentes no Brasil, onde a tentativa – dentro e fora do país – é desqualificar o STF. A Justiça Federal, de 1ª e 2ª instâncias, também sofre o mesmo no caso da educação médica. Atos e discursos que visam deslegitimá-la não combinam com a defesa da independência dos juízes. Proteger a integridade do Poder Judiciário, sem exceções, é fundamental, pois sem ela não há Estado Democrático de Direito, cujo pressuposto essencial reside no respeito às leis e ao Poder Judiciário, a quem cabe apreciar qualquer “lesão ou ameaça ao direito”.
A União, por meio da SERES e do CNE, inclusive, deveria participar ativamente na efetivação dos direitos reconhecidos pelo Poder Judiciário. Essa situação evidencia a incongruência que ainda perdura no caso dos cursos de Medicina.
Um Juiz em especial
Corroborando o quadro geral descrito, há um caso grave que exemplifica o resultado da postura da União em relação às medicinas: o reiterado ataque às decisões de um magistrado que, no início, proferiu ordens contra a moratória dos cursos de medicina e, mais recentemente, impôs sanções – multas e medidas sub-rogatórias, como os vestibulares – ao MEC. Essa situação exige um desagravo.
A investida contra esse juiz, muitas vezes velada, também foi pauta de reportagem, cujo título afirmava: “Justiça já autorizou 3,5 mil vagas de Medicina”. Na matéria, o nome do magistrado foi citado de forma semelhante à maneira como políticos e parte da imprensa se referem aos Ministros do STF, personalizando questões que não se originam de preferências pessoais.
Em Brasília – onde se situa a sede do MEC – apenas duas varas federais são responsáveis pelos casos de direito educacional, o que torna natural a atuação desse juiz em centenas ou milhares de processos envolvendo cursos de graduação. Nada foi dito a esse respeito e o artigo também não informa quantos processos foram indeferidos ou quantas decisões do magistrado foram mantidas pelos tribunais, tampouco menciona que, antes do deferimento dos pedidos de realização de vestibular, a União descumpriu diversas ordens judiciais – situação que, por lei, exige a atuação do juiz. De fato, deveria ter sido destacado, no mínimo, que a fundamentação das decisões proferidas por esse profissional tem se mostrado equilibrada e coerente em relação aos cursos de Medicina. Dessa forma, mesmo reconhecendo a liberdade da imprensa para reportar o que apura em suas fontes, é necessário um desagravo, pois o texto da reportagem representa mais o viés imposto pela União do que um relato fidedigno da atuação do magistrado.
Nesse sentido, o título do artigo ilustra bem o que foi exposto até agora. Primeiramente, ele distorce a realidade ao afirmar que foram autorizadas vagas, o que é falso, pois as decisões sobre vestibulares ressaltam a competência do MEC e do CNE para essa autorização – competência essa que poderia ter sido exercida para deferir ou indeferir os cursos antes das matrículas dos alunos. Em segundo lugar, o título refere-se genericamente à “Justiça” para tratar da Justiça Federal de 1ª instância sem considerar que vários ministros do STF já confirmaram suas decisões e que a Corte, na ADC 81, também validou a possibilidade de milhares de outras vagas que até então eram ferrenhamente contestadas pelo MEC. Dessa forma, transparece a mesma premissa discutida anteriormente: as instâncias ordinárias não possuem legitimidade para tratar dos cursos de medicina, pois elas, de fato, só causariam interferências inoportunas.
Essa premissa é falsa e isso precisa ficar claro. A Justiça Federal pode decidir, e a União, representando o MEC, pode recorrer. Entretanto, não se pode rebelar e deixar de cumprir ordens judiciais esperando uma decisão do STF – afinal, no Brasil, o tempo de se aguardar horas, dias ou meses por uma reviravolta já passou, e agora prevalece o brocardo: “Decisão judicial não se discute, cumpre-se.”
- Texto escrito por Edgar Jacobs.