Não há saúde sem Mais Médicos: uma carta aberta

O programa foi um marco para a saúde do país, mas nasceu para ser uma política de indução, não de contenção da expansão de cursos e vagas de medicina.

Compartilhar:

Escrito por:

Edgar Jacobs
Advogado, Doutor em Direito e Consultor na área de Direito Educacional

Texto por: Edgar Jacobs. Advogado. Doutor em Direito e Consultor na área de Direito Educacional.

No segundo mês de 2025, ocorreu um fato significativo: a substituição de uma das gestoras de saúde mais competentes do Brasil — uma figura-chave na época da COVID e pesquisadora de renome internacional. O problema, no entanto, não está na pessoa que assumiu o cargo, pois ele possui formação e experiência na área, além de excelente trânsito político. Tampouco se restringe à questão de representatividade de gênero, a qual poderá ser compensada em uma eventual reforma ministerial. A questão central é saber se essa troca representará um avanço para a saúde pública.

Ações descoordenadas

Uma das dimensões mais urgentes do cenário atual é a falta e a má distribuição de médicos. O Brasil precisa, há anos, de mais profissionais na área, e o novo ministro da Saúde — que assinou a Lei do Programa Mais Médicos — está ciente disso. O programa foi um marco para a saúde do país, mas nasceu para ser uma política de indução, não de contenção da expansão de cursos e vagas de medicina.

Hoje, é preciso levar em conta que o programa ficou interrompido por anos, distanciando ainda mais muitas de suas metas. A iniciativa privada, seguindo o disposto no Art. 209, encontrou formas de manter ao menos um crescimento mínimo de vagas, mas o Ministério da Educação (MEC) trabalhou fortemente para contê-lo. A falta de coordenação entre MEC e Ministério da Saúde (MS) contribuiu para este quadro.

Após cinco anos de suspensão de novas autorizações de curso, o MEC continuou, em 2023, a restringir a criação de cursos, mesmo quando avaliados com conceitos de qualidade bastante elevados. Nesse período, o Ministério da Saúde liderou a mudança na Lei 12.871/2013, instituindo a Estratégia Nacional de Formação de Especialistas para a Saúde. Contudo, nada foi feito em relação aos cursos de graduação por meses. O edital de chamamento só apareceu no décimo mês de Governo, após diversos adiamentos e sem que o MS demonstrasse insatisfação.

Esse primeiro edital, voltado às mantenedoras de ensino, foi no mínimo peculiar. Em vez de selecionar os municípios por meio de edital, optou-se por um algoritmo que apontou centenas de regiões de saúde cujos municípios sequer haviam sido notificados sobre a possibilidade de ter cursos de medicina. O resultado, na primeira fase, foi a ausência de propostas para pouco mais de 10% das regiões “pré-selecionadas”.

O edital para hospitais de excelência (que não constava da legislação original do programa, a MPV 621/2013) também pode gerar transtornos. Entre outras exigências, há a de um número excessivo de leitos próprios e a de certificações que não podem ser obtidas no período em que o edital ficará aberto (de abril de 2024 a abril de 2025). Até agora, apenas unidades hospitalares das regiões Sul e Sudeste conseguiram se habilitar.

Todos esses acontecimentos foram conduzidos principalmente pelo MEC, com o Ministério da Saúde atuando, em vários momentos, como simples parecerista sobre temas técnicos.

O papel no processo de desjudicialização

O Supremo Tribunal Federal (STF), atento à interrupção do Programa e aos direitos dos envolvidos, validou uma solução para a necessidade de expansão da educação médica: permitir que cerca de 200 processos de autorização continuassem tramitando no MEC, possibilitando a publicação de Portarias. Esperava-se que essa medida contribuísse para a desjudicialização da questão.

Contudo, o Ministério da Saúde teve participação ainda menor nesse processo: limitou-se a responder a consultas do MEC sobre dados de regiões de saúde e municípios, e em muitos casos nem sequer atendia às demandas das Instituições de Ensino interessadas em informações.

Particularmente tímida foi sua atuação na análise da “necessidade social”. O MS, que deveria ser o guardião das diretrizes do SUS, aceitou passivamente que o MEC avaliasse os cursos sem considerar o princípio da regionalização. Em múltiplos ofícios, o Ministério da Saúde restringiu-se a informar o número de médicos p.or habitante nos municípios, sem questionar o descumprimento do Art. 3º, §§ 1º e 7º, da Lei 12.871/2013 e da Lei 8.080/1990 (Lei do SUS).

O Ministério da Saúde também não apontou que áreas urbanas de regiões metropolitanas podem ter níveis de vulnerabilidade social iguais ou até maiores que localidades distantes ou de pequeno porte. A própria exposição de motivos da Medida Provisória original do Programa Mais Médicos mencionava “áreas de maior vulnerabilidade de capitais e regiões metropolitanas”, mas o MS não defendeu a manutenção dessa diretriz. Além disso, deixou de enfatizar que a formação médica não se restringe aos hospitais, ignorando que existem campos de prática em Equipes Multiprofissionais, Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), entre outros. Esse silêncio contraria as próprias políticas do Órgão na área de atenção primária e saúde mental, revelando falta de protagonismo na formação médica.

Mais horas, menos médicos

Por fim, há uma possível falha encoberta pela ausência de transparência em relação a alguns cálculos importantes. A questão envolve o número de médicos por mil habitantes.

Além de considerar um espaço geográfico mais reduzido o cálculo é feito não por meio da contagem de médicos ativos nas localidades, mas mediante aplicação do padrão FTE (full-time equivalent). Segundo o Ministério da Saúde “…se um médico trabalha em média 40 horas semanais, ele é equivalente a 1 FTE. Já um médico que atua meio período, com 20 horas semanais, é equivalente a 0,5 FTE”. O problema é que fala não se explica se um médico com 60 horas semanais passa a valer como “1,5 médicos”. Nesse cenário, pessoas sobrecarregadas poderiam ser contabilizadas como se houvesse mais profissionais, gerando a impressão artificial de maior cobertura médica.

Além de considerar um espaço geográfico mais reduzido o cálculo é feito não por meio da contagem de médicos ativos nas localidades, mas mediante aplicação do padrão FTE (full-time equivalent). Imagem: Pan American Health Organization

Essa situação nasceu do uso de um padrão internacional que, em países como o Reino Unido, é aplicado com critérios estatísticos claros e contextualizados. Aqui, além de potenciais distorções ilegais, como os casos em que há horas-extra pagas sem contraprestação, há problemas normativos: o Decreto regula os programas de residência, por exemplo, atribui aos médicos residentes um “regime especial de treinamento em serviço de 60 (sessenta) horas semanais (Art. 4º, do Decreto 6.932/1981), sendo assim, no Brasil, cada residente é aquilatado como um médico e meio – algo que soa ofensivo até mesmo do ponto de vista ético.

E o pior, neste caso, é que o MS pode até considerar todas essas questões em seu cálculo, mas a falta de divulgação dos dados provoca dúvidas justificadas.

Mudança e possibilidades futuras

Independentemente do que foi feito pelo Ministério da Saúde em relação à desjudicialização dos cursos de medicina e aos novos editais de chamamento, o órgão ainda pode assumir um papel de maior destaque no Programa Mais Médicos. O MEC, como instituição, certamente acolherá contribuições, pois o tema é verdadeiramente transdisciplinar e, até agora, tem estado mais sob a responsabilidade de secretarias de educação superior e da Advocacia-Geral da União (AGU) do que de especialistas em saúde.

Um bom começo seria reconhecer que a Portaria relativa à decisão do STF foi elaborada pelo MEC e que a “Nota Técnica” sobre o assunto saiu das mãos de um único técnico desse ministério. Já no Edital de Chamamento, o Ministério da Saúde teve participação técnica superior, embora não tão expressiva na gestão das regras.

Observando esse déficit de participação, o MS pode desatar um processo para aperfeiçoar as normas, garantindo que cursos de qualidade em áreas carentes sejam avaliados de forma adequada e justa. Também pode abrir suas bases de cálculo e parar de enviar respostas padronizadas quanto à “necessidade social”, atuando em cooperação efetiva para identificar regiões realmente necessitadas — não apenas fornecendo dados brutos.

Há, de fato, uma oportunidade de retomar o sentido original do Programa Mais Médicos e acabar com a judicialização. Adotar, a partir de agora, um processo equilibrado de análise dos cursos que estavam judicializados apagará de vez os efeitos da injustificável moratória de cinco anos. Paralelamente, é possível ajustar os editais de chamamento para que fiquem mais adequados à realidade da saúde brasileira. Para isso, é preciso que o diálogo prevaleça, e talvez seja necessário dar alguns passos atrás, mas essa é a vantagem da mudança: um novo ponto de vista pode pavimentar caminhos novos.

Nesse contexto, a estranheza inicial causada pela substituição no Ministério da Saúde, ainda sentida por parte da população, pode ser superada pela percepção de que foi dado um passo à frente. No mínimo, em relação às travas para a expansão da educação médica, pode-se avançar de forma concreta. Assim, sem nunca deixar de valorizar outras conquistas de quem deixou o cargo, abre-se espaço para um novo foco e uma renovação positiva no país, que rompa com o corporativismo, amplie a oferta de médicos e, de fato, democratize o ensino na área da saúde.

Leia mais notícias sobre o mundo da Medicina:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Tudo que acontece na Medicina está na MEM. Assine nossa newsletter!

Ao enviar, você concorda em receber comunicações.

O mundo da medicina No seu e-mail.

Acompanhe todas as novidades, dicas, notícias e curiosidades do mundo da medicina no seu email.

*Ao enviar seus dados, você concorda em receber comunicações da Melhores Escolas Médicas e nossos parceiros. Você pode cancelar a inscrição a qualquer momento. Saiba mais em nossa Política de Privacidade.