A esporotricose tornou-se um dos principais desafios em saúde pública no Brasil, especialmente devido ao aumento expressivo de casos zoonóticos transmitidos por gatos. Trata-se da micose subcutânea mais frequente na América Latina, com impacto crescente em populações vulneráveis.
Médicos e estudantes precisam estar atentos: o diagnóstico precoce e o manejo correto são decisivos para evitar complicações e a disseminação da doença.
Neste artigo, revisamos os principais aspectos da esporotricose com foco prático e atualizado.
O que é Esporotricose?
Definição detalhada

Esporotricose é uma infecção subcutânea causada por fungos do gênero Sporothrix, adquirida geralmente por inoculação traumática na pele através de contato com solo, plantas ou, mais recentemente, por arranhaduras e mordeduras de gatos infectados. Popularmente chamada de “doença do jardineiro” ou “doença da roseira”, pode assumir curso subagudo ou crônico e, em casos graves, acometer órgãos internos.
Agente etiológico
O gênero Sporothrix não representa uma única entidade, mas um complexo de espécies filogeneticamente relacionadas com características epidemiológicas e de virulência distintas:
- Sporothrix schenckii (sensu stricto): Distribuição global, causa a forma clássica da “doença do jardineiro”, transmitida principalmente pelo ambiente.
- Sporothrix brasiliensis: Predominante na América do Sul (especialmente Brasil), altamente transmissível através de felinos, causando a atual epidemia zoonótica com maior virulência. Tem sido associada a um maior número de lesões, lesões mais exuberantes e maior frequência de envolvimento mucoso e formas disseminadas, mesmo em hospedeiros aparentemente imunocompetentes.
- Sporothrix globosa: Comum na Ásia e outras regiões, geralmente causa formas cutâneas fixas com menor virulência.
- Sporothrix luriei: Rara, mas altamente virulenta.
- Sporothrix mexicana e S. chilensis: Menos frequentes, geralmente associadas a formas mais leves.
Classificação
A esporotricose pode ser classificada em:
- Cutânea linfocutânea (mais comum, padrão clássico “em rosário”)
- Cutânea fixa
- Cutânea disseminada
- Mucosa
- Extracutânea (osteoarticular, pulmonar, neurológica)
Virulência
Os principais fatores de virulência observados são termotolerância, composição e espessura da parede celular e a produção de adesinas na parede celular do fungo em sua fase leveduriforme. Outro fator de virulência importante é a produção de melanina na parede celular. Esse pigmento é um importante fator de virulência para vários fungos.
Epidemiologia da esporotricose
Distribuição geográfica
A esporotricose possui distribuição cosmopolita, com predileção por regiões de clima tropical e subtropical. Áreas hiperendêmicas incluem países da América Latina (especialmente Brasil), partes da África e Ásia.
No Brasil, a região Sudeste, particularmente o Rio de Janeiro, é considerada hiperendêmica para a esporotricose zoonótica causada por S. brasiliensis.
Incidência e prevalência

Dados recentes do Ministério da Saúde indicam uma contínua ascensão: em 2023, foram registrados 1.239 casos humanos no Brasil, e até junho de 2024, já haviam sido notificados outros 945 casos.
A subnotificação é frequente, mas em março de 2025 a doença passou a ser de notificação compulsória em todo o território nacional.
Fatores de risco
- Contato com solo, matéria vegetal ou madeira contaminada
- Atividades de jardinagem, agricultura, floricultura
- Exposição a gatos infectados (especialmente não castrados e com acesso à rua)
- Imunodeficiência (HIV/AIDS, diabetes, uso de imunossupressores)
- Condições socioeconômicas precárias
Populações vulneráveis
- Jardineiros, agricultores, floristas, veterinários, tratadores de animais
- Crianças, idosos e mulheres (maior contato domiciliar com animais)
- Indivíduos imunocomprometidos
Fisiopatologia
A patogênese da esporotricose inicia-se com a inoculação traumática de propágulos fúngicos (conídios ou fragmentos miceliais) na pele ou mucosas. No local, e sob a temperatura corporal (35-37°C), ocorre a transição dimórfica da forma filamentosa (ambiental) para a forma de levedura (patogênica e invasiva).
As leveduras utilizam adesinas (Gp70, Hsp60, Pap1) para se ligar à matriz extracelular do hospedeiro (fibronectina, laminina, colágeno), estabelecendo a infecção. Enzimas extracelulares podem auxiliar na invasão local.
A presença do fungo desencadeia uma resposta inflamatória aguda, com recrutamento de neutrófilos e macrófagos. Clinicamente, surge a lesão primária (pápula ou nódulo), conhecida como “cancro esporotricótico”.
A partir daí, a infecção pode seguir diferentes caminhos:
- Disseminação Linfática: As leveduras são transportadas pelos vasos linfáticos regionais, formando nódulos inflamatórios secundários ao longo desse trajeto, caracterizando a forma linfocutânea (mais comum).
- Forma Cutânea Fixa: A infecção permanece localizada no sítio de inoculação, sem disseminação linfática aparente.
- Disseminação Hematogênica: Menos comum, ocorre principalmente em imunocomprometidos, levando o fungo a órgãos distantes (ossos, articulações, pulmões, SNC), resultando em formas extracutâneas ou sistêmicas.
Quadro clínico
Manifestações clínicas comuns
A lesão inicial ou “cancro de inoculação” e ainda “cranco esporotricótico” acontece em semanas a meses, no local do trauma, após a inoculação transdérmica do agente.
Quando há a disseminação pelos vasos linfáticos regionais, frequentemente se formam lesões nodulares ao longo de seu trajeto , assumindo um aspecto “em rosário” ou de “colar de pérolas”. Evolutivamente, os nódulos fistulizam-se e abscedam, formando uma linfonodite abscedante ascendente. Esta caracteriza a forma mais frequentemente observada na esporotricose humana, que é denominada linfocutânea, 50 a 70% dos casos.
A forma fixa cutânea ocorre em 20 a 30% dos pacientes. Nessa forma, não se observa a disseminação linfática que caracteriza a forma anterior. A lesão pode ser única ou múltipla, com ulcerações cutâneas de bordos bem delineados, eritematosos e infiltrativos.
Em ambas as formas pode haver prurido e dor de intensidade variável nas lesões.
Manifestações clínicas graves/alertas e apresentações atípicas
- Cutâneas Atípicas: Lesões verrucosas, em placa, acneiformes, celulite-símile, infiltrativas profundas, múltiplas lesões disseminadas.
- Envolvimento Mucoso:
- Ocular: Conjuntivite, edema palpebral, secreção, dor, fotofobia, granulomas.
- Nasal: Rinorreia sanguinolenta, crostas, obstrução, epistaxe.
- Oral/Faríngea/Laríngea: Lesões ulceradas ou granulomatosas, dor, disfagia, disfonia.
- Envolvimento Osteoarticular: Artrite (geralmente monoarticular – joelho, punho, cotovelo, tornozelo), dor, edema, calor, limitação de movimento.
- Envolvimento Pulmonar: Tosse crônica, dispneia, dor torácica, febre, perda de peso. Pode haver cavitação (mimetizando tuberculose) e hemoptise (rara).
- Envolvimento Neurológico (Neuroesporotricose): Rara, mas grave. Cefaleia, febre, rigidez de nuca, vômitos, alterações do nível de consciência, convulsões, déficits neurológicos focais.
- Formas Disseminadas: Febre prolongada, perda de peso, mal-estar, hepatoesplenomegalia, linfadenopatia generalizada. Lesões cutâneas múltiplas e polimórficas.
- Reações de Hipersensibilidade: Eritema nodoso, eritema multiforme, síndrome de Sweet.
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Diagnóstico
Como diagnosticar a esporotricose?
Anamnese e exame clínico
- História Epidemiológica: Ocupação e atividades de lazer, contato com animais (especialmente gatos), contato com solo e plantas, trauma cutâneo prévio.
- História da Doença: Evolução das lesões, sintomas associados.
- Antecedentes Pessoais: Comorbidades, imunossupressão.
Exame físico:
- Exame Dermatológico: Inspeção e palpação das lesões (morfologia, número, distribuição, tamanho – procurar padrão linfangítico).
- Pesquisa de Linfadenopatia: Palpação de cadeias linfonodais.
- Exame de Mucosas: Oral, nasal, ocular.
- Exame Sistêmico: Se suspeita de forma extracutânea (ausculta pulmonar, exame osteoarticular, neurológico).
Exames laboratoriais
- Cultura micológica(padrão-ouro): isolamento do Sporothrix em meio de cultura, a partir de amostras da lesão, exsudato ou biopsia.
- Exame microscópico direto: observação direta do agente a partir de amostras da lesão, exsudato ou biópsia. Baixa sensibilidade em humanos e alta sensibilidade em felinos.
- Histopatologia: também tem baixa sensibilidade em humanos nas formas cutâneas.
- PCR: útil em casos paucibacilares ou para identificação de espécie.
- Sorologia: valor limitado, útil em formas disseminadas.
Métodos de imagem
Não necessários para formas cutâneas, mas importantes para avaliar formas extracutâneas:
- Osteoarticular: Radiografias, TC, RM (erosões ósseas, sinovite, derrame articular).
- Pulmonar: Radiografia, TC (infiltrados, nódulos, cavidades).
- Neurológica: TC, RM (realce meníngeo, lesões parenquimatosas).
Diagnóstico diferencial
- Cutânea/Linfocutânea: Leishmaniose tegumentar, tuberculose cutânea, micobacterioses atípicas, nocardiose.
- Pulmonar: Tuberculose, histoplasmose, aspergiloma, neoplasias.
- Osteoarticular: Artrite séptica, tuberculose articular, artrite reumatoide.
- Neurológica: Meningite tuberculosa ou criptocócica, neurossífilis.
Tratamento
Abordagens terapêuticas
- Farmacológica: Principal modalidade, com antifúngicos sistêmicos.
- Adjuvante/Local: Termoterapia, criocirurgia, eletrocirurgia.
- Cirúrgica: Raramente indicada como terapia primária, exceto em casos específicos.
- Suporte/manejo sintomático: Cuidados com lesões, manejo da dor, suporte nutricional.
Tratamento farmacológico
- Itraconazol: primeira linha para casos cutâneos e extracutâneos. Não indicado para gestantes e hepatopatas. Crianças: dose por peso.
- Iodeto de potássio: alternativa com boa resposta clínica e baixo custo, especialmente para locais de baixo recurso. Pode ser associado ao itraconazol em formas graves ou refratárias.
- Terbinafina: opção para quando o itraconazol ou iodeto de potássio não são tolerados. Mais indicado em casos leves e em crianças > 2 anos.
- Anfotericina B: para formas graves, disseminadas, neurológicas ou em imunocomprometidos. Pode ser usado em gestantes.
- Fluconazol, posaconazol, isavuconazol, miltefosina: opções para casos refratários, algumas menos eficientes (uso off-label ou em pesquisa).
Manejo de suporte e sintomático
- Cuidados locais com as lesões (higienização, curativos)
- Analgesia, suporte nutricional, reabilitação fisioterápica se necessário
Complicações agudas e crônicas
- Infecção bacteriana secundária das lesões cutâneas.
- Formação de abscessos.
- Cicatrizes (atróficas, hipertróficas, queloidianas), alterações de pigmentação.
- Deformidades estéticas e funcionais (ex: perda de cartilagem nasal, perfuração septal).
- Linfedema crônico do membro afetado.
- Limitação funcional e anquilose articular (na forma osteoarticular).
- Fibrose pulmonar e insuficiência respiratória crônica (na forma pulmonar).
- Déficits neurológicos permanentes (na neuroesporotricose).
- Impacto psicossocial (estigma, isolamento, ansiedade, depressão).
- Recidiva da doença.
- Morte: Rara, mas pode ocorrer em formas disseminadas graves, especialmente em imunocomprometidos ou com diagnóstico/tratamento tardio.
Conclusão
A esporotricose é hoje uma doença de grande relevância clínica e epidemiológica, especialmente no Brasil. O reconhecimento do padrão clássico e das formas atípicas, o diagnóstico laboratorial precoce e o manejo adequado são essenciais para evitar complicações e impedir a disseminação.
O controle efetivo da esporotricose exige atuação interdisciplinar e foco em Saúde Única, incluindo o tratamento dos animais e educação da população. Atualizações em terapêutica e vigilância seguem sendo prioridade para conter esta micose negligenciada.
Resumo técnico elaborado pela Dra. Olyvia Spontan:

Olyvia Spontan é médica formada pela Universidade Tiradentes (UniT) em 2022, com formação sanduíche na UPAEP (Universidad Popular Autónoma del Estado de Puebla – México) – ano de 2016.
Atua como médica reguladora e tem experiência em regulação de urgências e regulação de leitos. Além disso, é entusiasta da tecnologia, aliada à IA para redação de textos médicos, dos quais hoje é revisora.











