O Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto (HCFMRP) da USP deu uma aperfeiçoada na sua Residência de Medicina de Família e Comunidade. Agora, os médicos residentes vão ter um ano a mais de estudos, com foco total em saúde mental para populações que muitas vezes são deixadas de lado, e ainda vão aprender mais sobre gestão.
Em declaração ao Jornal da USP, o professor João Mazzoncini de Azevedo Marques, que coordena o programa, é aprofundar o que já vem dando certo nas unidades de saúde da periferia da cidade. Lá, os médicos de família já trabalham coladinhos com comunidades que enfrentam altas dificuldades sociais. “A gente viu que cuidar bem da saúde física, mental e dos problemas sociais da galera dá resultado”, explica o professor.
Ele conta que as equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF) que atuam na periferia de Ribeirão Preto, com apoio da Faculdade de Medicina (FMRP), chegam a cuidar de até 3 mil pessoas por equipe. O segredo? Um forte laço com a comunidade e uma atuação que vai atrás dos problemas. E isso tem feito uma diferença real na saúde mental. “No nosso dia a dia, percebemos que quem foi atendido por nossos profissionais nos últimos 12 meses teve menos transtornos mentais do que quem passou por equipes tradicionais. Outras iniciativas pelo SUS também mostram que o cuidado com a saúde mental é melhor quando feito por médicos de família”, destaca Mazzoncini.
Esse ano extra se baseia na ideia de “coprodução de saúde”, um conceito da Organização Mundial da Saúde (OMS) que fala sobre um cuidado construído numa relação de parceria e igualdade entre os profissionais, os pacientes, suas famílias e a comunidade.
Medicina: humanidade e ciência
Em depoimento ao Jornal da USP, a médica de família e comunidade Cely Carolyne Pontes Morcerf, que está à frente dessa prática e faz doutorado na USP, reforça que o lance é ter empatia, compaixão, ser parceiro, aceitar o outro, coordenar os cuidados e tudo isso com base no que a ciência já comprovou que funciona.
Para Cely, o negócio é formar médicos que criem raízes em um lugar, que estudem aquela área, ouçam os líderes comunitários – seja da galera em situação de rua, do sistema prisional, da população negra, indígena, LGBTQIAPN+, ou refugiados e consigam acolher essas pessoas entendendo suas vivências e o que elas realmente precisam. “Estar na comunidade é sacar o impacto das questões sociais na saúde como um todo, usando o vínculo e a conversa com a família como ferramentas chave”, diz ela.
E não é só nos postinhos, não! A médica aponta que essa especialidade pode atuar em vários outros lugares, como cuidando da saúde mental dos estudantes. Ela também dá o papo reto: a invisibilidade é o primeiro obstáculo para ter acesso à saúde. “Se a gente tratar todo mundo igual, sem pensar nas desigualdades, as populações mais esquecidas vão continuar sem conseguir cuidar da saúde de verdade”, garante.
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Residentes utilizam ferramentas para um maior cuidado com os pacientes
As ações desse novo modelo focam em um cuidado personalizado para os pacientes. Para isso, os residentes usam várias ferramentas como a entrevista motivacional (uma conversa que ajuda a pessoa a encontrar suas próprias razões para mudar), rodas de papo, visitas em casa, arteterapia, teatro do oprimido, oficinas e grupos terapêuticos, além de ensinar a população sobre saúde e usar ferramentas familiares como o genograma (um tipo de árvore genealógica da saúde) e conferências familiares.
“Isso pode ajudar muito, inclusive, em casos de uso pesado de drogas, internet demais ou vício em jogos de aposta”, explica Cely. “A gente foca nas chances de parar ou de diminuir os danos aos poucos, de um jeito personalizado para cada um”.
Esse tipo de atendimento, segundo Cely, exige estar presente: “É quase todo dia. A gente não olha só o uso da substância, por exemplo, mas a raiz do problema, como a exclusão social, laços familiares quebrados, falta de políticas públicas que funcionem”. Ela também destaca a importância de aprender Terapia Familiar Sistêmica, com ajuda de professoras da Enfermagem.
O trabalho acontece em vários níveis: no “micro”, com o paciente; no mesmo, com a equipe e a família; e no “macro”, cutucando os serviços de saúde para que eles entendam que essas pessoas são prioridade. “Acompanhar o paciente por um tempo e criar um laço ajuda muito. Mas o desafio é ter uma visão de gestão que realmente priorize o acesso e o cuidado contínuo dessa galera mais esquecida”, enfatiza.

Formando médicos mais atenciosos
O professor Mazzoncini diz que um dos desafios é formar um profissional que não pense só em curar doenças. “É construir um médico com habilidades clínicas que incluem promover a saúde e prevenir problemas físicos, mentais e sociais.”
Cely complementa dizendo que o projeto nasceu de uma necessidade real: “Era uma dor nossa, dos profissionais que queriam uma formação mais crítica e humana, e uma dor de fora, das populações que continuavam adoecendo e morrendo por causa da exclusão e do preconceito na saúde”.
E o projeto não fica só dentro do Hospital das Clínicas, não. “Estamos levando essa abordagem para nossas Unidades de Saúde da Família, para dentro do sistema prisional e até para os alunos da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP”, conta Cely.
Aprender a cuidar de pessoas com hanseníase também faz parte do pacote. O residente faz estágio num ambulatório especializado no HC, o que deixa a formação mais forte para atuar em conjunto nos municípios e no SUS, com um olhar especial para doenças que muitas vezes são ignoradas. “Cuidar de populações vulneráveis e esquecidas é uma obrigação moral e ética. Com o que aprendemos, podemos ajudar essas pessoas e também aquelas que têm o privilégio de não passar por essas grandes dificuldades sociais”, destaca Cely.
Para driblar a separação que muitas vezes existe entre saúde mental e saúde física, o projeto aposta no Cuidado Compartilhado/Integral, também conhecido como matriciamento, um modelo do Ministério da Saúde. Mesmo em lugares onde o SUS não tem muita estrutura, a médica diz que tem como fazer: “Usar os recursos da própria comunidade que já existem fora dos serviços de saúde; usar bem os recursos que já temos; e lutar para construir o que falta, convencendo os gestores e a comunidade”.
A formação dos residentes também se prepara para lidar com situações dificéis, como a violência estrutural. “Com o suporte certo dos nossos professores e acompanhamento psicológico, os profissionais conseguem lidar e pensar sobre essas situações”, afirma Cely.
“A primeira turma deste ano já mostrou coisas muito boas, com médicos vindo de todo o Brasil, como Minas Gerais, Espírito Santo e gente do Nordeste, querendo seguir carreira acadêmica aqui na FMRP USP. Essa formação tem o poder de criar gente que vai espalhar essa visão para um trabalho de qualidade no SUS”, comemora a médica.
Para fechar, o professor Mazzoncini diz que espera “colaborar com uma assistência à saúde de qualidade, especialmente para as pessoas que fazem parte de populações vulneráveis e esquecidas”. Uma iniciativa que mostra que cuidar da saúde vai muito além de receitar remédio!
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