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Transplante de fígado com câncer: entenda o caso raro que levantou alerta em São Paulo

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Em julho de 2023, Geraldo Vaz Junior, técnico de eletrodomésticos, de 58 anos, recebeu um transplante de fígado pelo Sistema Único de Saúde no Hospital Albert Einstein, em São Paulo. O que deveria representar uma nova chance de vida transformou-se em um pesadelo médico.

Meses após o procedimento, exames revelaram que o órgão transplantado estava contaminado com câncer, um teste de DNA comprovou que o tumor era originário da doadora, não do próprio Geraldo, e já havia causado metástase em seu pulmão.

O caso trouxe à tona um debate essencial sobre os protocolos de segurança em transplantes e os limites da medicina na detecção de riscos. Apesar de extremamente raro, o episódio expõe uma realidade incômoda, mesmo com toda a tecnologia disponível e processos rigorosos de triagem, o risco zero não existe.

A trajetória de Geraldo, da esperança ao alerta

A história de Geraldo Vaz Junior começou como a de milhares de brasileiros que aguardam na fila por um órgão. Paciente com doença hepática, ele dependia de um transplante para sobreviver. Quando finalmente recebeu o fígado pelo SUS, em um dos hospitais mais renomados do país, parecia que seus problemas estavam resolvidos.

Contudo, exames de rotina realizados meses após o transplante detectaram alterações preocupantes. O diagnóstico confirmou a presença de um tumor no órgão transplantado. A análise genética não deixou dúvidas, o câncer pertencia à doadora, não ao receptor. Pior ainda, células malignas já haviam migrado para o pulmão de Geraldo, caracterizando uma metástase.

Diante da situação, a família decidiu tornar o caso público, buscando não apenas justiça, mas também alertar sobre possíveis falhas nos protocolos de triagem de órgãos. O objetivo não era apenas individual, mas levantar uma discussão ampla sobre segurança e transparência no sistema de transplantes brasileiro.

Como funciona a triagem de órgãos no Brasil

O processo de avaliação de um órgão para transplante envolve múltiplas etapas e profissionais especializados. Antes de qualquer doação ser autorizada, equipes médicas realizam uma análise minuciosa do histórico do doador, investigando fatores como uso de álcool ou drogas, doenças prévias (hepatite, HIV), histórico familiar de doenças graves como câncer, além de cirurgias ou condições crônicas anteriores.

O Manual dos Transplantes do Ministério da Saúde é claro, órgãos com neoplasias metastáticas (câncer com metástase) devem ser descartados para evitar a transmissão de doenças ao receptor.

A decisão final sobre o uso de um órgão cabe à equipe de transplante, responsável pelo paciente receptor, não ao hospital onde ocorreu a captação. Essa equipe é composta por profissionais credenciados pelo Ministério da Saúde, incluindo cirurgiões, clínicos e anestesistas especializados em transplantes.

Quando surge um doador compatível, a Central de Transplantes entra em contato com a equipe responsável, que analisa todos os exames, o histórico e decide se aceita ou não o órgão para seu paciente.

Por que tumores podem passar despercebidos

Mesmo com protocolos rigorosos e tecnologia avançada, a medicina enfrenta limitações na detecção de tumores microscópicos, e quando o órgão é transplantado já contendo algumas células cancerígenas, mesmo que imperceptíveis, esse tumor pode se desenvolver posteriormente no corpo do receptor.

Esse fenômeno é conhecido na comunidade médica como risco residual uma possibilidade reconhecida, mas estatisticamente baixíssima. Um estudo publicado em 2002 na revista científica Transplantation, referência na área, analisou um grande número de transplantes e encontrou uma incidência de menos de 0,05% de casos em que tumores foram relacionados ao órgão doado.

O adenocarcinoma e seus riscos ocultos

O tipo de câncer que acometia o fígado doado pertence ao grupo dos adenocarcinomas, tumores malignos que se originam em células glandulares. Esses tumores podem ter comportamento agressivo e capacidade de formar metástases quando células cancerígenas se espalham para outras partes do corpo através da corrente sanguínea ou sistema linfático.

No caso de Geraldo, a presença de células tumorais no órgão transplantado teve consequências graves. O sistema imunológico de receptores de transplantes é deliberadamente suprimido por medicamentos para evitar a rejeição do novo órgão. Essa imunossupressão, necessária para o sucesso do transplante, pode paradoxalmente facilitar o crescimento de células cancerígenas que eventualmente tenham sido transplantadas junto com o órgão.

O contexto dos transplantes no Brasil

O Brasil possui um dos maiores sistemas públicos de transplantes do mundo. Em 2023, o país registrou o maior número de transplantes de órgãos em dez anos, com um aumento de 17% em relação ao ano anterior. Em 2024, o Brasil bateu novo recorde, realizando mais de 30 mil transplantes pelo SUS.

Apesar dos avanços, o sistema enfrenta desafios significativos. Segundo o governo federal, atualmente cerca de 78 mil pessoas aguardam por doação de órgãos no país. Os órgãos mais demandados são rim (42.838 pacientes), córnea (32.349) e fígado (2.387). A espera pode ser longa e angustiante, e muitos pacientes não resistem até receber o transplante.

Um dos maiores obstáculos à ampliação das doações é a recusa familiar. No Brasil, mesmo que a pessoa tenha manifestado em vida o desejo de ser doadora, a palavra final cabe aos familiares de primeiro grau ou cônjuges.

Cerca de 40% a 50% das famílias optam por negar a doação, muitas vezes por medo, convicções religiosas, falta de confiança no sistema de saúde ou mitos urbanos. Em 2023, o número de recusas familiares bateu recorde dos últimos dez anos, totalizando 3.425 casos.

Consentimento informado e transparência médica

Todo paciente que entra na fila de transplantes deve ser informado sobre os riscos inerentes ao procedimento, incluindo possibilidades estatisticamente raras como a transmissão de doenças através do órgão doado. O consentimento informado é um princípio fundamental da ética médica e está previsto na legislação brasileira.

No entanto, comunicar riscos extremamente baixos apresenta dilemas, como explicar a um paciente gravemente doente, que depende de um transplante para sobreviver, que existe uma chance mínima (menos de 0,05%) de receber um órgão com câncer não detectado? Equilibrar transparência com a necessidade de não gerar pânico desnecessário é um desafio constante para as equipes médicas.

Os protocolos atuais exigem que as equipes de transplante documentem todas as informações relevantes sobre riscos e benefícios, garantindo que o paciente ou seus representantes legais tomem uma decisão consciente. Cada equipe responsável por um transplante analisa individualmente os dados do doador e decide se aceita ou não o órgão para seu paciente.

Investigação e responsabilidades

Casos como o de Geraldo acionam diferentes instâncias reguladoras. Órgãos como o Ministério Público, a Anvisa, o CREMESP (Conselho Regional de Medicina de São Paulo) e a Secretaria da Saúde podem ser convocados para investigar possíveis falhas no processo de triagem e transplante.

Essas investigações buscam determinar se houve negligência, se os protocolos foram seguidos corretamente, se exames complementares que poderiam ter detectado o tumor foram realizados, e se o consentimento informado foi adequadamente obtido. O objetivo não é apenas responsabilizar eventuais culpados, mas também aprimorar os protocolos para evitar que situações semelhantes se repitam.

Lições médicas e aprimoramento contínuo

O caso de Geraldo Vaz Junior, por mais doloroso que seja, oferece lições importantes para o sistema de transplantes. Primeiro, reforça a necessidade de constante atualização dos protocolos de triagem, incorporando novas tecnologias de diagnóstico por imagem e exames laboratoriais mais sensíveis.

Segundo, evidencia a importância da comunicação transparente com pacientes e familiares sobre todos os riscos, por menores que sejam. A medicina moderna reconhece que riscos zero não existem, mas isso não deve ser usado como desculpa para falta de rigor e transparência.

Terceiro, ressalta que mesmo em um dos hospitais mais renomados do país, com protocolos alinhados às melhores práticas internacionais, eventos adversos raros podem ocorrer. Isso não invalida o sistema, mas demonstra a necessidade de vigilância contínua e disposição para aprender com cada caso.

A comunidade médica brasileira, representada por entidades como a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO), continua trabalhando para reduzir ainda mais esses riscos residuais, sem comprometer o acesso de milhares de pacientes que dependem de transplantes para sobreviver.

O delicado equilíbrio entre risco e benefício

Geraldo Vaz Junior continua em tratamento, enfrentando as consequências de um evento estatisticamente improvável. Sua história comove, mas também nos lembra de uma realidade fundamental da medicina, todo procedimento médico envolve algum grau de risco.

Os transplantes de órgãos salvam milhares de vidas anualmente. Em 2024, mais de 30 mil procedimentos foram realizados no Brasil, representando 30 mil histórias de esperança renovada. A imensa maioria desses transplantes ocorre sem complicações graves relacionadas ao órgão doado.

O desafio para o sistema de saúde é continuar aprimorando seus protocolos, investindo em tecnologia diagnóstica, treinando equipes multidisciplinares e mantendo canais transparentes de comunicação com pacientes e sociedade. Casos raros como o de Geraldo não devem desencorajar doações hoje, mais de 78 mil pessoas aguardam por um órgão que possa salvar suas vidas, mas sim motivar melhorias contínuas no sistema.

A medicina avança precisamente porque aprende com seus raros insucessos, sem perder de vista suas incontáveis vitórias diárias.

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